Umwelt e modelos do metaverso

Como uma teoria da biologia pode jogar luz no design de experiências imersivas.

Marcus Bruzzo
UX Collective 🇧🇷

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Ilustração mostra pessoa submersa e presa a fios
Ilustrações de Denis Freitas

Por que insisto tanto que o UX (relação humano-máquina) seja uma função tão intimamente relacionada com uma condição social/biológica, ainda mais do que simplesmente design de sistemas? Ora, porque toda interface humana — à qual todo esforço do UX se faz valer no intento de prover aplicações e processos humanamente adequados — é uma interface primariamente cultural. Interfaces 2D ou 3D são interfaces; físicas ou virtuais são também, ambas, interfaces. Aquilo que se “interfaz” relaciona um ser humano e um “conteúdo” por um “código”, e justamente este código, que faz a ligação, é um objeto social, simbólico, convencional, histórico e político.

Claro que a tecnologia que permite estas ligações é obra, em grande parte de uma ciência exata, de matemática mecânica ou eletrônica. É verdade também que processos empregados na sua constituição como AIs com processos tais quais mapping, data mining, datasets e etc, baseiam-se em ciências exatas, mas este limiar é tênue. Isso porque, por exemplo, a constituição lógica da programação utilizada em inteligência artificial, com algorítimos que se valem de proposições indutivas (voltarei a falar sobre Inductive Learning Algorithm [ILA]), é muito mais humana do que obra do cálculo frio da matemática pura.

O UX, por excelência, não pode se deixar levar pela esteira do cálculo, porque afinal, isso iria à contramão do que seu título propõe. UX é uma ciência humana, mais intimamente ligada com questões sociais do que meramente tecnológicas.

Então, para tratarmos destas relações entre percepção e objeto, ou seja, a fenomenologia do UX como relação psicológica, biológica linguística e social, costumo propor uma abordagem que orienta a percepção da relação humano-máquina pelo estudo do Umwelt.

Umwelt e experiência

Umwelt é um termo trabalhado por Jakob Von Uexküll na biologia, datado de 1906, que indica a presença de uma esfera perceptiva ao redor do indivíduo. Para o termo alemão que se lê “umvelt”, “Externalidade” ou “Esfera de Percepção” seriam boas adaptações. Esta ideia teve uma implicação muito profunda na percepção das relações entre consciência e espaço, porque, sob esta noção, e ao contrário do que se cria no berço das ciências biológicas, entende-se que o indivíduo “carrega o mundo” consigo, como registros possíveis, isto é, o mundo não é um encontro mas um reencontro constante.

Imagens extraídas do texto original de Uexkull que mostram, Abelha em seu habitat à esquerda, e o Umwelt com elementos de sua percepção à direita, conceptualizado por Uexküll em 1934. O Umwelt aparece como a visão reduzida da abelha sobre seu entorno, caracterizando as limitações da Bolha em que vive.
Abelha em seu habitat à esquerda, e o Umwelt com elementos de sua percepção à direita, conceptualizado por Uexküll em 1934.

Por exemplo, o Umwelt (“mundo ao redor”) de uma abelha seria uma área de aproximadamente 4 metros em todas as direções na dimensão visual, alguns quilômetros na percepção de odores, alguns centímetros possivelmente na dimensão auditiva, e assim por diante. Suas projeções ocorrem dentro destas esferas, o conjunto das quais, se configura como sua realidade objetiva. As obras de Uexkull foram muito abrangentes e impactantes, tendo tido como interlocutor ninguém menos que um dos maiores filósofos da fenomenologia do século XX, Marti Heidegger, autor de O Ser e o Tempo. Marcantes também porque suas teorias abriram caminho para a veemente oposição às correntes naturalistas francesas como de Lamark, onde a biologia passava a ser vista como uma manifestação de respostas mecânicas ao ambiente, excluindo completamente a criatividade da vida animal.

A questão das esferas de percepção

Imagem do LIDAR, radares de veículos autônomos, mostra um veículo ao centro rodeado de círculos e o seu entorno sendo mapeado, como se o veículo sentisse o que está ao seu redor. Esta bolha de percepção se assemelha ao conceito de Umwelt.
Representação de LIDAR pela empresa Velodyne

Uexkul provém diversos exemplos interessantes sobre estes registros que embasam sua teoria. O conceito acabou trafegando desde a biologia à antropologia, etologia, mas também fenomenologia e existencialismo, e mais atualmente à neurofisiologia e Machine Learning. Agora, o termo é amplamente utilizado pela área de Inteligência Artificial (AI) no esforço de significar a “bolha” perceptiva que elementos como um LIDAR fornecem à máquina como dados do mundo exterior. A principal lição dos Umwelten é, portanto que no espaço biológico, tanto quanto no tecnológico, o mundo acontece durante a jornada do indivíduo (ou máquina), e desenvolver uma pesquisa partindo deste pressuposto é um ponto importante para o afastamento das premissas dualistas cartesianas que há tanto resistem no meio científico.

Mas e o UX?

Bom, posto que se trata da prática da aplicação de testes que resultem em saídas para o nivelamento entre a informação e ação, da perspectiva que prioriza a experiência, basta que consideremos o ser humano como um ser dotado de uma esfera perceptiva, como qualquer outro animal complexo, e que sua resposta bio-cognitiva derive dos estímulos que esta pessoa receberá em seu Umwelt. Dentro dos Umwelten das pessoas, encontraremos esferas perceptivas que:

  1. Serão limitadas por características fisiológicas, como a constituição dos sentidos do seu corpo, sejam táteis, visuais, auditivas, etc. Assim, limitações físicas definem a experiência.
  2. As esferas estão no indivíduo, isto é, são esferas modelizantes, partidas da cultura e que projetam possibilidades de uso ou ação, assim como reconhecimento de elementos do mundo.
  3. Na esteira de Uexküll, vale lembrar que são esferas projetivas, ou seja, a experiência do indivíduo refere-se a um reencontro com conceitos ou possibilidades previamente estabelecidos na cultura.

Esta esfera perceptiva, como o alcance da visão como limite biológico (aqui não apenas distância, mas frequências do espectro de luz visível), o espaço de limite auditivo (novamente, em distância e frequência) o tato, olfato etc, é uma condição biológica de constituição da consciência humana e sua mecânica de relação com a realidade objetiva, mas quando lidamos com a escalada da virtualização das relações humanas sociais, como a criação de ambientes virtuais, VR, AR e Metaverso, devemos considerar uma esfera adicional de percepção na esfera do Umwelt biológico. O Umwelt virtual.

A questão da Criatividade

Estas esferas são, objetivamente, espaços de percepção do mundo físico que os indivíduos possuem ao seu redor. A primeira lição destas observações, mesmo à época de Uexküll, foi que não se tratavam de registros diretos da “realidade física” como por muito tempo se imaginou, mas de projeções — muitas das quais criativas — de um conjunto de elementos que nos circundam.

Pincelando brevemente os princípios da fenomenologia, os objetos não são percebidos como mera matéria, mas justamente como objetos, ou seja, como elementos “com objetivo”, função ou relação. Uma cadeira é uma imagem inculcada da função “sentar” ou sentimento “descanso” ou ainda status social. Um infante é ensinado a compreender que a cadeira é “tudo que seja moldado de tal forma que propicie uma sentabilidade”. Até que seus atos não sejam tolhidos ou castrados, a criança subirá na cadeira, pulará, moderá, virará ao contrário, porque estas são possibilidades mecânicas reais, mas estão fora do registro da cadeira como interface social.

Ilustração artística mostra rosto de um homem com aparelho VR sobre os olhos. Ao fundo, um grid, ou malha apresenta uma superfície plana de onde surge o rosto.
Ilustrações de Denis Freitas

A partir daí, a imagem modelizada (partindo da experiência primordial) começa a ser projetada como possibilidade a outras situações do seu cotidiano. Uexküll, enquanto observava o comportamento de animais de outra complexidade como sapos e cães, notou que muitas vezes, elementos que adentram seu Umwelt são registrados “equivocadamente”, mas que independente do erro, respostas bio-químicas ocorrem no organismo dos animais, gerando ações. É o caso do cachorro que se confunde com o movimento de uma folha, e late para ela, até mesmo morde, tratando-a como possível animal, dado o registro de seu movimento e do modelo projetivo de comportamentos característicos de outros animais, como andar. Outro exemplo é a relação dos gatos com pepinos, onde os felinos famosamente se assustam com a forma do vegetal, dada a categoria perceptiva desta forma estar provavelmente relacionada a animais nocivos.

Nos seres humanos, isso é, claro, mais complexo, e registros trocados são facilmente identificados em situações em que respondemos com susto, medo, ou curiosamente, brincadeiras. A criatividade é uma sobreposição de registros, sobrepondo dois ou mais elementos distintos trazendo algo “novo”. Neste sentido, de que forma isso não é exatamente a maneira pela qual um sistema integra a vida cotidiana de uma pessoa como simulação?

um aplicativo de banco é uma simulação do conceito de banco que as pessoas já carregam com elas

Uma aplicação, qualquer que seja, como simulação que é, imbui um modelo de representação que invade o Umwelt (esfera perceptiva) de um ser humano, e conduz a uma série de associações mediadas com o intuito de viabilizar uma determinada demanda. Devemos manter em mente que, um aplicativo de banco é uma simulação do conceito de banco que as pessoas já carregam com elas.

Ilustração artística representa um homem de costas andando em direção a um grid geométrico abstrato onde as formas começam a ficar menos definidas à distância
Ilustrações de Denis Freitas

As possibilidades de entrega e administração deste conteúdo são infinitas da perspectiva UX. Isto significa que as maneiras como a experiência se presta às dimensões do Umwelt de uma pessoa na escolha das interfaces e ordenação de cada parte do processo, (o quê ocorre online, o quê ocorre offline e em qual ordem), no fim, corroboram para um reencontro com um composto de conceitos de fins e usos que esta pessoa já possui em mente. Os limites destas aplicações ainda estão por ser testados, mas uma boa experiência de um app, em geral, tem se mostrado ser a capacidade de facilitação de algo que se fazia antes.

Uber, como um táxi simplificado, Fintechs como bancos simplificados, Waze como navegação simplificada; todos como aplicações que no fundo, invocam modelos de função e uso anteriores que já estão contidas na mente das pessoas, e que portanto exigem este reconhecimento.

A atuação do UX como ciência de interfaces, seria então criar, guiar e controlar as formas pelas quais esta experiência é se torna um bom reencontro, por meio da orquestração de formas no Umwelt das pessoas, vezes experiências visuais, vezes, sonoras, vezes táteis, considerando suportes online e offline, como um composto geral ao qual se dá o nome de produto, serviço, ou simplesmente, experiência.

Entender o Umwelt como uma esfera perceptiva, assim como suas características físicas e intelectuais, é fundamental não apenas para as novas ciências de inteligência artificial, mas para projetar aplicações que se dissipem melhor no mundo, e se integrem melhor com a vida das pessoas.

Referências

Para conhecer Uexkull

  • Cognitio, São Paulo, v.17, n.1, p.13–38, jan./jun. 2016

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Master Semiotics of Culture (Tartu, Estonia), Meios e Processos ECA-USP. <<Coord. Design Experiência Digital FTD Educação >> {culture, communication technology}